Grandes diferenças de Rendimento e riqueza resultam do mérito ou da sorte? A ciência aponta mais para a sorte!

Há três fatores principais que determinam, sob o ponto de vista individual, a criação de riqueza/rendimento e as concernentes desigualdades económicas e sociais: o esforço, o talento e a sorte. Habituaram-nos a pensar que os dois primeiros, articulados a uma conceção meritocrática da sociedade, são os fatores determinantes. Ou seja, os ricos, melhor dizendo, os muitos ricos, construíram a sua riqueza com muito esforço e talento e, de uma maneira geral, quem é pobre é assim porque trabalha menos e tem menos talento que os ricos. E é esta crença socialmente impregnada na sociedade que torna socialmente aceitável e justo o facto de, atualmente, 42 pessoas no mundo terem tanta riqueza como a metade mais pobre da população mundial. Foi o talento e o esforço que tornou essas 42 pessoas nas mais ricas do mundo ou a sorte? Há boas razões para pensar que talvez as coisas não sejam como parecem e a sorte (nascer num determinado país, numa determinada família, com determinadas capacidades etc…) seja um fator determinante das desigualdades sociais. Razões, digamos assim, filosóficas (a priori) e científicas (a posteriori). John Rawls já tinha dado o mote para esta discussão, ao dar um considerável enfoque ao papel da sorte na produção de desigualdades sociais e a necessária  retificação institucional através dos princípios da justiça.

E, diga-se, quanto mais se estuda a sério o modo como, ao longo da história, os ricos constroem a sua riqueza e como se desenvolvem as desigualdades sociais, mais evidências surgem sobre o papel secundário do talento e do esforço na criação de desigualdades sociais profundas na sociedade.  O trabalho de David Marçal, no jornal Público de ontem traz alguma luz sobre essas evidências empíricas. Segundo David Marçal  “é evidente que o sucesso individual não é uma consequência directa das qualidades e esforço pessoais. Na realidade, cerca de metade da variação de rendimentos no mundo explica-se apenas pelo país de residência e pela distribuição de rendimentos dentro desse país. E o país de residência é um factor sobre o qual os mais pobres têm pouco ou nenhum controlo”. Refere Marçal que de acordo com uma investigação de 2013 realizada na Alemanha, “as pessoas com apelidos mais sonantes (como Kaiser, que significa imperador) têm com mais frequência cargos de liderança do que as que têm apelidos modestos (como Koch, que significa cozinheiro)”. Também salienta o trabalho de três investigadores italianos (dois físicos teóricos e um economista) que “publicaram em 2018 os resultados de uma simulação computacional em que tentaram avaliar o papel da sorte e do talento (entendido como um agregado da inteligência, determinação, esforço, etc.) no sucesso individual (definido apenas como a riqueza de cada um). Assumiram que a maior parte dos indivíduos tinha valores intermédios de talento, havendo um pequeno número com valores muito elevados ou muito baixos. Começaram todos com o mesmo nível de riqueza. Ao longo da simulação, um conjunto de acontecimentos ao acaso poderia aumentar ou diminuir a riqueza de cada um. As pessoas com mais talento tiravam mais partido da sorte. No final 20% das pessoas concentravam 80% da riqueza. E os mais ricos não eram os mais talentosos, mas indivíduos com um talento mediano favorecidos pela sorte.” Do ponto de vista individual, ter mais talento é sempre uma vantagem. Mas como o número de pessoas com talento mediano é bastante maior, é muito mais provável que algumas dessas pessoas sejam bafejadas pela sorte e não a minoria altamente talentosa. A simulação não prova que a distribuição de riqueza no mundo real se deve quase exclusivamente à sorte. Apenas que é plausível gerar esse tipo de desigualdade económica só com base na sorte. Os autores questionam o paradigma meritocrático, que consiste em concentrar as recompensas numa minoria de sucesso, assumindo que este sucesso tem como base o talento. David Marçal dá também o exemplo do economista Gregory Clark, professor na Universidade de Davis, na Califórnia que publicou em 2014 o livro The Son Also Rises (O Filho também Triunfa), no qual relata uma abordagem inovadora para estudar a mobilidade social. “Clark consultou registos históricos de vários países e concluiu que os mesmos apelidos sonantes persistem ao longo de séculos entre os mais ricos e escolarizados, resistindo às rupturas de sistemas políticos, económicos e sociais. No caso de Inglaterra, e de acordo com registos de 1670 a 2012, entre os descendentes das elites é preciso recuar cerca de dez gerações para encontrar antepassados da classe média. Na Suécia – país conhecido pelo modelo social-democrata – persiste uma classe descendente da aristocracia do século XVIII, com apelidos sonantes como Leijonhufvud, Gyllenhaal, Rosencranz e Von Essen. Essas pessoas, oito gerações depois, ainda têm três ou quatro vezes mais hipóteses de serem médicos ou advogados, possuem uma riqueza acima da média e vivem nas áreas mais caras de Estocolmo. Em Portugal, e de acordo com um relatório de 2018 da OCDE, podem ser precisas até cinco gerações para que as crianças nascidas numa família de baixos rendimentos consigam atingir rendimentos médios. E segundo um estudo do think tank Edulog da Fundação Belmiro de Azevedo, os alunos das classes mais favorecidas dominam os cursos de maior prestígio como medicina, direito e engenharias. Enfermagem tem quase três vezes mais alunos pobres do que medicina, solicitadoria tem quase o dobro dos pobres que entram em direito. Os pais das classes mais favorecidas podem investir mais tempo e dinheiro para que os seus filhos tenham sucesso escolar.

Esta entrada foi publicada em Desigualdade Social, Sociedade. ligação permanente.

Deixe um comentário