Contra a democracia, a ignorância política ou a Educação Democrática? (III) – o voto como ato de decisão moral.

votoVejamos, então, porque a argumentação de Jason Brennan, em Contra a Democracia, não é cogente. Comecemos por analisaras as premissas 1 e 5 explicitadas no texto anterior (premissa 1 – a democracia tem pior desempenho que a Epistocracia; e premissa 5 – as liberdades políticas não são fundamentais para o respeito próprio do indivíduo).

Na premissa 1 Brennan afirma que a Epistocracia tem melhor desempenho que a democracia (“no mundo real”, p.31), que há razões instrumentalistas para preferir a Epistocracia em detrimento da democracia. No entanto, questiona-se, como pode Brennan afirmar a preeminência da epistocracia face à Democracia, se apenas conhecemos o funcionamento real da Democracia e o funcionamento ideal da Epistocracia. Na verdade, Brennan compara uma versão realista da democracia com uma versão idealizada da epistocracia, o que acaba por ser uma argumentação falaciosa. Recorde-se que foi justamente esta crítica que Brennan, em “Capitalismo. Porque não?”, dirigiu a Cohen (“Socialismo. Porque não?”), ao considerar que este compara uma “versão imaginária, idealizada de um regime socialista com uma versão mais realista de um regime capitalista”.

Faria, aliás, todo o sentido que Brennan comparasse a versão idealizada da epistocracia com uma versão idealizada (pelo menos aperfeiçoada) da democracia: será que a democracia funcionaria do mesmo modo se conseguíssemos melhorar o conhecimento político e as formas de participação (deliberação) dos cidadãos?

De outro modo, a perspetiva consequencialista de Brennan exige uma melhor clarificação: o que significa instrumentalmente melhor? O que significa produzir melhores resultados? O que são boas decisões? Recentemente duas perspetivas fortemente opostas orientaram as ações políticas em vários países democráticos. Umas defendiam que as melhores decisões eram aquelas que reduziam os salários e os impostos sobre os agentes económicos, para promover o crescimento económico. Outras defendiam medidas contrárias. Como sabermos qual a melhor?

Brennan versus Rawls 

Na premissa 5, Brennan justifica a substituição da democracia pela epistocracia por considerar que as liberdades/direitos políticos não são importantes para o cidadão. Aqui Brennan critica a perspetiva de John Rawls, um dos filósofos que mais importância deu às liberdades políticas, como condição necessária para a justiça social e a dignidade do ser humano. Se pensarmos numa sociedade justa, temos que pressupor, segundo Rawls, uma sociedade como um sistema equitativo de cooperação e, para tal, é essencial considerar todas as pessoas como livres e iguais. A ideia de pessoas livres e iguais, na conceção de justiça como equidade de Rawls, reside em duas faculdades morais que todas as pessoas têm num grau mínimo essencial: a capacidade para um sentido de justiça e a capacidade para formar uma conceção de bem ou vida boa. São faculdades morais necessárias para os cidadãos se envolverem na cooperação social e participarem na sociedade como cidadãos iguais. A primeira dessas faculdades proporciona a cada cidadão a capacidade para compreender e aplicar princípios da justiça. É esta faculdade que define a personalidade moral de cada indivíduo. A segunda faculdade moral – a capacidade para formar uma conceção do bem ou de boa vida – designa a capacidade do indivíduo, assente na sua racionalidade, para escolher livremente fins e os meios mais adequados para atingir esses fins. Ou seja, esta faculdade propiciará ao indivíduo, a escolha livre de um projeto de vida ou vida boa.

O caráter moral do ato de votar

A perspetiva de Rawls permite-nos, para já, duas inferências. Por um lado, persuade-nos a aceitar que qualquer indivíduo, dotado de capacidades racionais comuns, é capaz de ser razoável – de ter sensibilidade moral, de distinguir o justo e o injusto, o mau e o bom, ou seja, de ser um agente moral consciencioso. Note-se que quando afirmo que o indivíduo é capaz, não significa que todos os indivíduos sejam, efetivamente, moralmente conscienciosos. No entanto, é difícil aceitar a ideia que qualquer indivíduo dotado de capacidades racionais comuns não possa saber se é errado o desvio ou roubo de dinheiros públicos por detentores de poder político ou público (peculato); ou se é moralmente reprovável a tomada de decisões políticas em troca de dinheiro, valores ou serviços para proveito próprio (corrupção). E que, por consequência, não se deve votar em pessoas que desviam ou roubam dinheiros públicos, ou que tomam decisões políticas em troca de favores económicos. Se assim é, todos os indivíduos dotados de capacidades racionais comuns devem ter direito de voto, o que é negado pela proposta epistocrática de Brennan. Nomeadamente, porque Brennan vê a decisão política expressa pelo voto como um dispositivo para resolver questões técnicas ou administrativas em vez de se tratar de uma forma de solucionar desentendimentos morais. O voto dos cidadãos é, essencialmente, um ato moral e não, primordialmente, uma decisão técnica ou administrativa, como preconiza o filósofo espanhol Inigo Gonzalez, um dos críticos da argumentação de Brennan. Não expressa (ou não deveria expressar) a opinião sobre qual o valor adequado do salário mínimo nacional ou se é preferível construir um hospital em vez de um estádio de futebol. Deve, em vez disso, expressar apreciações valorativas, como por exemplo, a justeza ou imoralidade de determinadas ações políticas: deve-se esbater ou reforçar a desigualdade económica? Deve-se investir em políticas de coesão social?  Deve-se fomentar a identidade nacionalista ou cosmopolita dos cidadãos? Deve-se legalizar a eutanásia? Não há nem respostas cientificamente exatas a estas questões nem consenso, seja entre pessoas ignorantes, seja entre os sábios. Todavia, é necessário e possível tomar decisões sobre estas e outras questões. A votação é o corolário da necessária deliberação pública e dos desentendimentos morais decorrentes da ausência de respostas cientificamente exatas e de consensos racionais públicos. Daí a importância da educação sobre o valor moral das diferentes opções políticas. Se forem adequadamente educados para a referida capacidade valorativa e informados/esclarecidos através de processos deliberativos, os cidadãos também são capazes de saber valorizar princípios ou regras básicas de uma sociedade justa, tais como, por exemplo,, que a desigualdade resultante de diferente esforço dos indivíduos é aceitável, enquanto a desigualdade resultante de circunstâncias específicas diferentes (como a raça, o género ou a condição social) é inaceitável; que a fuga ao fisco é social e moralmente reprovável e que o Estado é uma instituição fundamental na regulação de transações de determinados bens sociais (o Estado deve proibir a compra/venda de seres humanos, do voto ou de decisões judiciais); que cada cidadão tem obrigações ou determinados vínculos morais ou até políticos para com os seus concidadãos, que implicam congruentes responsabilidades morais e políticas.

Liberdades políticas e autorrespeito

A segunda inferência decorrente da perspetiva de Rawls é que, ao contrário do que preconiza Brennan, a associação entre as liberdades políticas e a dignidade humana não é contingente. As liberdades políticas são fundamentais, direta ou indiretamente, para a consubstanciação daquilo a que os filósofos chamam “conceção de vida boa”. O rendimento e a riqueza são bens sociais primários fundamentais para uma “vida boa”, para o bem-estar do indivíduo. Mas também a liberdade e o autorrespeito proporcionado pelo reconhecimento do indivíduo e respetivas especificidades socioculturais, a partir da esfera pública. Reconhecer o valor intrínseco do outro a partir da esfera pública abarca também a possibilidade de lhe proporcionar a participação livre e coletiva na construção da sociedade, onde se substancializa a sua conceção de vida boa. Vejamos, por exemplo, a correlação consuetudinária entre o rendimento/riqueza e a categoria social de cada indivíduo. Ser negro, mulher ou de uma classe desfavorecida (boa parte dos excluídos por Brennan da votação democrática) implica, desde sempre e por si só, desigualdade de rendimento. Ora, esta injustiça social, mesmo que supostamente contingencial, mesmo que resultado de uma convenção social historicamente construída, só é sanável através de representação política das referidas categorias sociais. O direito de voto das mulheres e negros, no século XX, alterou radicalmente o seu reconhecimento e dignidade social. Assim sendo, Brennan está errado quando desvaloriza o caráter semiótico do direito de voto, entendido como expressão do respeito pelo estatuto de igualdade dos cidadãos. A identidade de cada indivíduo corresponde ao modo como se auto-define, ou seja, à imagem que faz ou tem de si. No entanto, a imagem que cada um faz de si subordina-se à imagem que o outro faz de si: “É perante o tu que posso, e faz sentido, dizer eu”, afirma Fabrízia Raguso. Não há identidade sem reconhecimento, como declara o filósofo Charles Taylor (em Multiculturalismo – examinando a política de reconhecimento), pois a nossa identidade é formada pela “existência ou inexistência de reconhecimento” . Um reconhecimento incorreto de um indivíduo ou grupo pode afetar negativamente ou “ser uma forma de agressão” à pessoa ou grupo. Isto acontece quando existe a projeção de uma imagem do outro como ser inferior e desprezível. Ora, a discriminação, através da participação política, contribui, necessariamente, para prejudicar o amor-próprio de indivíduos e grupos configurando-se como uma forma de injustiça, mesmo que tal situação produzisse globalmente melhores resultados para a sociedade. Imagine que a existência de um número reduzido de escravos em Portugal produzia melhores resultados para a economia portuguesa, mesmo que afete o autorrespeito e a dignidade dos referidos escravos. Seria moral e socialmente aceitável tal situação?

As liberdades políticas são também fundamentais para garantir a igualdade de oportunidades. Num regime democrático, a acessibilidade a cargos e funções depende de leis justas e do modo como o poder político formula, aprova, cumpre e faz cumprir essas leis. Num regime democrático os políticos ficam vinculados moral e politicamente a todos os cidadãos (porque todos os cidadãos podem exercer o seu direito de votar ou não votar nesses políticos). Num regime epistocrático os políticos ficam vinculados moral e politicamente apenas aos cidadãos mais esclarecidos e instruídos, habitualmente os mais ricos (porque apenas esses cidadãos podem exercer o direito de votar ou não votar nesses políticos). E este vínculo exerce pressão e infuencia, pelo menos coletivamente, as decisões do poder político.

Em conclusão, na perspetiva de Brennan, a cidadania política e o direito de voto não contam para a afirmação da identidade, do autorespeito e da dignidade de cada pessoa, o que parece implausível. Brennan admite como tolerável a discriminação política de certos grupos sociais, no pressuposto de a distribuição epistocrática do poder “produzir governos de melhor qualidade, assim como resultados bons, substantivamente mais justos”. Mas será que um sistema político apenas dominado por classes favorecidas, supostamente esclarecidas, produzirá resultados justos, nomeadamente para classes desfavorecidas, sub-representadas nesse sistema político? Brennan acha que sim, considerando que nem para promover o próprio interesse as classes desfavorecidas têm suficientes conhecimentos políticos o que, pelo exposto acima, também parece pouco aceitável.  E mesmo que as classes desfavorecidas não sejam suficientemente informadas para, através do poder político, promover a defesa dos seus próprios interesses, há que, em vez de excluí-las da comunidade política, integrá-las, melhorando a sua qualidade epistémica e moral, através da educação. Mas abordarei essa questão no próximo artigo em que analisarei as restantes premissas da argumentação de Brennan.

Esta entrada foi publicada em Educação Democrática, Filosofia Política, Ignorância Política. ligação permanente.

Deixe um comentário